Uivar com grito de gente

Saber uivar nunca foi definitivamente para todos. Nunca chegou para todos, nem nunca completou todas as linhas de vida existentes. Descobrir, saber olhar como nunca ninguém viu, reconhecer tendências sem antes delas próprias existirem é um dom, uma magia inigualável. E que não alcança todos. Não envolve todas as almas, por muito que pretendam. Por muito que lutem, se esforcem e representem. Saiu o livro que nos comove. Pelo menos a mim, será sempre uma viagem no tempo, até à altura em que me cruzei com o António Sérgio nos corredores da rádio. Estava lá para uma entrevista quando o vi. Deixou-me aquela impressão que os grandes deixam. Uma sensação de estarmos perante uma entidade religiosa. Sem saber o que dizer, após as devidas apresentações, fiquei imediatamente rendida à sua sensibilidade e franqueza. À sua superioridade moral, ao seu jeito inato para fazer conversa e retirar aquilo que queremos e não queremos dizer ao Mundo. Nasceu também o filme que o resgata. Se bem que este grande Homem, terá sempre todas as menções que merece, com o passar dos anos. Quem uiva assim, não se cala. Nem nunca será esquecido. Um dos mais marcantes nomes da música no nosso País, é homenageado postumamente com a edição do documentário especial de Eduardo Morais, “Uivo”. Uma viagem pelos nomes influenciados por António Sérgio. Um nome que já na sua altura declarava o empreendedorismo da cultura, das artes, do talento sério. E contaminava todos com a sua voz poderosa e os seus programas de autor acarinhados. Para além disso, um livro. “ O Uivo da Matilha”. Conduzido pela sua mulher, Ana Cristina Ferrão, apresenta-se recheado de histórias, partilhas e depoimentos quase sagrados. Sempre me surpreendeu esta bela união de almas. Alguém que conduzia fielmente a música portuguesa, no sentido da ascensão, divulgação e criatividade. E que saudades nos deixa. Fortes lembranças desse nome que se casou com a pujança criativa do nosso País. E que nos empurra para a frente. Para a continuação da construção de algo maior. Podemos uivar como tu, António?

Ana Rita Clara